sábado, 23 de maio de 2009

A Guerra do Ultramar

O meu primo contou-me que foi enviado para Angola, em 1961. Passo a transcrever um excerto do seu diário que escreveu durante a guerra.

“3 De Outubro de 1968
Acordámos, como já era habitual, ao som aterrador da pesada portada a embater com violência no parapeito da caserna. Desta vez foi o Amílcar que, ao colocar a tranca no bordo da dita e já quase na posição de maior abertura, desencalacrou-se da palanca e aí vem aquele amontoado de latas, desamparado, esbarrar com os bordos da caserna. O som não era exactamente de uma granada defensiva, mas o resultado era quase igual. Toda a malta alarmada pulava da cama, praguejando e barafustando com o desatinado madrugador. O nosso dormitório, meio sepultado, não é mais que um agrupado de chapas de zinco caneladas, pregadas a barrotes esparramados, sem quaisquer meios de segurança. As osgas, enormes e disformes, pouco nos incomodam pela empatia já existente; além disso ao devorarem alguns mosquitos, substituem e eliminam o cheiro inquinado do insecticida. Nos momentos de temporal, só o peso de alguns de nós, suspensos no barrote central, evitava que tudo fosse pelos ares.
Passados uns momentos, todos nos recompusemos do susto e preparámos o pequeno-almoço, só o Neves tem mais dificuldade em recupera, ou melhor, em acordar.
Ninguém ingere o café com o leite, vindo da cantina da CCDS (Comando). O bidão, que servira antes de reservatório de gasóleo, tem tanto tarro no fundo, que nenhum de nós o ousa ingerir.
Abre-se o frigorífico, bebem-se umas Nocais, umas colas, salsichas e eu, com um pouco mais de pachorra, cozo uma porção de flocos de aveia, misturados com leite em pó e lá vai a mistela. Mas, há já uns dias, em substituição dos flocos, tenho-me deliciado todas as manhãs com uma omeleta de ovos, para admiração de todos. Ovos fresquinhos, acabados de sair do cu da pita. E, “quem cabrito vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem”! E estes vieram, nem queria crer, bem debaixo da minha cama. Gentilmente, uma galinha do Lopes, sem que alguém se aperceba, acocora-se diariamente dentro da caixa de madeira onde guardo a roupa para lavar e me presenteia com tamanha oferenda.
Abençoada safra.
À hora do almoço, sorvido o peixe frito com arroz espapaçado e já arrumada a bancada de madeira que serve de mesa, tudo parecia normal. A sombra do colmo e outros ramos vindos da Mata do Mussuco, assim como o odor enigmático da floresta africana, deixa-nos nostálgicos.
Para lá do arame farpado, avista-se soberbo o Rio Congo, cuja corrente impetuosa arrasta tudo à sua frente.
Repentinamente o Sousa Pereira, num movimento brusco, arremessa uma pedra na direcção de umas galinhas que tranquilamente depenicavam as flores de melancia, que entretanto tinha semeado na pequena horta.
Uma das galinhas foi atingida no cocuruto, cacarejou sofregamente, deu várias voltas e caiu redonda.
Resolvido o dano da liquidação do animal com o Lopes, tínhamos agora matéria para uma apetecida churrascada para o jantar. Uma galinha não dá para muitos, mas a boa vontade supera a escassez; afinal, o maior proveito é o convívio e a amizade entre jovens desterrados.
Enquanto o Vampiro, amigo folião e especialista em churrascos e respectivos condimentos, fazia o lume e preparava a ave, já nós, com o sabor no pensamento, deborcávamos uma grade de cerveja. E depois veio outra e outra e com certeza mais outra.
O som duma guitarra traz-nos a nostalgia e uma desgarrada, desgarrada.
Veio depois o desatino, as graçolas, os desvarios de quem tem necessidade de extravasar sentimentos de opressão e angústia abafada.
O Dinamite, com um bochecho de cerveja, borrifou o “Ciclista” que se mostrou indiferente. O “Vampiro” esborrachou um ovo na cabeça do Barcelos, que cai para trás de tanto rir.
As cervejas já voavam, o candeeiro a petróleo partiu-se e os pratos serviam de batuque.
Prudentemente, o Dias, responsável pela geradora de energia aos radares e ao acampamento, desligou o ruidoso monstrengo e tudo cai num silêncio atroz.
Um a um, praguejando de raiva, foi encontrando o local de recolha e pouco depois tudo se abateu num sonho de fantasia.
Dias depois compreendi, com desgosto, que a galinha fatalmente atingida pela pedrada do Sousa Pereira era aquela que, gentilmente, depositava os ovos de ouro na minha caixa da roupa suja.”

Aquartelamento no norte de Angola


Rio Congo


Picada no Norte de Angola


Local da guerra - passagem de guerrilheiros



Radar MK


Caserna Militar em Angola


Interior do Radar




Pedro Ramalho